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Ney Matogrosso é um ‘bicho-homem’ indomado em filme impulsionado pela atuação ‘oscarizável’ de Jesuíta Barbosa

Cinebiografia de Esmir Filho retrata o artista na luta incessante pela liberdade com roteiro fiel aos fatos e temperado com dosado apelo homoerótico. Jesuíta ...

Ney Matogrosso é um ‘bicho-homem’ indomado em filme impulsionado pela atuação ‘oscarizável’ de Jesuíta Barbosa
Ney Matogrosso é um ‘bicho-homem’ indomado em filme impulsionado pela atuação ‘oscarizável’ de Jesuíta Barbosa (Foto: Reprodução)

Cinebiografia de Esmir Filho retrata o artista na luta incessante pela liberdade com roteiro fiel aos fatos e temperado com dosado apelo homoerótico. Jesuíta Barbosa é bem caracterizado como Ney Matogrosso no filme que estreia amanhã, 1º de maio, mas que já tem sessões especiais a partir de hoje Marina Vancini / Divulgação ♫ OPINIÃO SOBRE FILME Título: Homem com H Direção e roteiro: Esmir Filho Cotação: ★ ★ ★ ★ 1/2 ♬ É sintomático que imagens de matas sejam vistas no início e no fim de Homem com H, cinebiografia de Ney Matogrosso que estreia nos cinemas amanhã, 1º de maio, mas que já tem sessões especiais a partir de hoje, 30 de abril, véspera do feriado. É que o cantor sul-mato-grossense – que fará 84 anos em 1º de agosto, daqui a três meses – é enfocado como bicho-homem indomado no filme dirigido e roteirizado por Esmir Filho com fidelidade a tudo o que Ney já revelou em entrevistas e biografias ao longo de 52 anos de vida pública. Um bicho-homem que, se acuado, ataca para defender a liberdade – bandeira que norteia a vida e a Arte de Ney – mas que, fora de cena, às vezes costuma se refugiar na mata, se recolhendo solitário no habitat natural, um sítio cultivado em Sampaio Correia, distrito de Saquarema (RJ). Na tela, esse bicho-homem ganha o corpo e alma de Jesuíta Barbosa. Como o primeiro trailer de Homem com H já sinalizara em 10 de fevereiro, o ator pernambucano que fará 34 anos em 26 de junho – nascido em 1991, 50 anos depois de Ney Matogrosso – impressiona na pele do camaleônico artista. Trailer de 'Homem com H', cinebiografia de Ney Matogrosso É primoroso o trabalho de caracterização do ator nas diversas fases da vida de Ney, mas o que sensibiliza o espectador é a percepção de que, sem imitar Ney, Jesuíta incorporou com precisão o jeito, os trejeitos, os olhares, os gestuais, enfim, a alma do cantor, sujeito estranho que se esconde atrás da fantasia do palco. Em interpretação magnética, digna de (improvável, mas merecida) indicação ao Oscar 2026, Jesuíta Barbosa captura um bicho-homem no fundo arisco, por mais que a exuberância exibicionista de Ney no palco teime em sugerir o contrário. Com apelo homoerótico exposto na tela em doses bem calculadas (sobretudo nas cenas do quartel carioca em que Ney serviu à aeronáutica em 1959), para não restringir o público de filme destinado a ser blockbuster, o roteiro de Esmir Filho é atravessado pelo embate ideológico de Ney com o pai, o militar Antônio Matogrosso Pereira, já falecido, interpretado pelo ator Rômulo Braga. Ney afrontou censores – é intencionalmente risível a cena em que dois deles negociam os gestos do cantor em show dos anos 1970 – e todo tido de repressão no Brasil dos anos de chumbo, mas, como avalia ao fim, a maior autoridade enfrentada por ele foi mesmo o pai conservador que somente começou a se dobrar silenciosamente diante do talento do filho ao assistir em 1975 ao primeiro show solo de Ney, O homem de Neanderthal. Esse show é enfocado sintomaticamente no início do filme porque, no espetáculo feito por Ney após a saída do Secos & Molhados, o bicho-homem afiou as garras para provar que podia sobreviver em cena sem o trio que fora veículo para a projeção do cantor em todo o Brasil em 1973. O trio Secos & Molhados tem a implosão em 1974 abordada no roteiro escrito pelo diretor Esmir Filho Marina Vancini / Divulgação Ao longo de mais de duas horas, o roteiro dá conta de mostrar todos os principais lances da vida folhetinesca de Ney Matogrosso e da carreira, em ação concentrada nos anos 1960, 1970 e 1980. A implosão do Secos & Molhados em 1974 por ganância e disputa de poder, por exemplo, é bem resumida no filme. Como é filme de ficção (fiel aos fatos), e não documentário sobre a trajetória profissional do cantor, Homem com H escapa da cobrança de mostrar como Ney se manteve coerente ao longo dos 50 anos de carreira solo. Se omite o grito de independência dos esquemas fonográficos, dado pelo cantor em 1986 após cancelar a produção de show antes da estreia por perceber que começava a repetir fórmulas comerciais, o roteiro abre espaço para as relações de pele e alma do bicho-homem com Cazuza (1958 – 1990) e com Marco de Maria, grandes amores da vida louca vida – interpretados por Jullio Reis e Bruno Montaleone, respectivamente – e põe em foco a Aids, causa da morte de ambos. O caso de Ney com Cazuza é bem retratado na fugacidade que gerou amor eterno após a consumação do desejo carnal durante alguns meses. Já a relação de 13 anos com Marco Maria é abordada com superficialidade desculpável porque, por se tratar da cinebiografia de um cantor, o roteiro também tem que ser preenchido com vários números musicais. No caso, os (muitos) números musicais foram todos dublados pelo próprio Ney Matogrosso. Vê-se na tela as expressões lapidares de Jesuíta Barbosa, mas a voz ouvida é a de Ney, dono de singular registro de contralto. Alavancado pelo trabalho de Jesuíta, o filme flui tão bem que o espectador nem se dá conta de que, a rigor, Homem com H retrata Ney Matogrosso pela ótica do cantor sem ir além do que o próprio Ney já tornou público. E, se sempre se soube muito sobre Ney Matogrosso, pouco veio à tona sobre Ney de Souza Pereira, a identidade real do bicho-homem, fora do palco. Nesse sentido, o filme nada acrescenta a quem já leu a última biografia do cantor, escrita pelo jornalista Julio Maria e editada em 2021. O retrato da tela resulta tão atraente quanto unidimensional. Inexistem visões críticas da postura do artista e do bicho-homem, com exceção da cena em que Ney é acordado por amiga para o fato de que, em 1975, fazia o primeiro show solo para os críticos, e não para o público que aumentou a partir de 1976 e explodiu em 1981, ano do disco que trouxe o sucesso forrozeiro Homem com H (Antonio Barros, 1974), cuja gravação, sugerida com insistência pelo produtor Marco Mazzola, gerou dúvidas em Ney, dissipadas somente a partir de conversa no estúdio com Gonzaguinha (1945 – 1991). O diálogo de Ney com Gonzaguinha é reconstituído em Homem com H, filme sedutor que honra a luta e a paixão de Ney Matogrosso pela liberdade, mote da vida do artista. No filme, o ator Jesuíta Barbosa incorpora com precisão o jeito e os olhares de Ney Matogrosso Marina Vancini / Divulgação